7.5. Uma banca pública estratégica
A transformação do atual modelo económico, que alia a financeirização às desigualdades e à destruição ambiental, requer o controlo democrático do sistema financeiro. Para isso, a propriedade pública é condição essencial, mas não suficiente. Ao controlo acionista dos bancos devem corresponder uma estratégia económica clara para o desenvolvimento do país e uma gestão profissional, limpa e transparente.
A fragilidade do atual modelo ficou exposta com a derrocada de todos os grandes negócios alavancados em dívida no pressuposto de uma eterna valorização dos ativos financeiros. Para além da destruição de tecido empresarial das PME, muito dependente da procura interna atacada pela austeridade, os bancos foram obrigados a registar nos seus balanços milhares de milhões de euros de perdas associadas a créditos especulativos. As imparidades foram, em parte, pagas com fundos públicos. Depois de várias transferências a fundo perdido no BPN, BPP e no Banif, o sistema bancário foi financiado pelo Fundo de Resolução que, por sua vez, foi financiado pelo Estado, direta e indiretamente (além do contributo da CGD, as contribuições obrigatórias das outras instituições bancárias são receitas do Estado, que fica no Fundo).
Desde 2008, o Estado colocou-se assim numa situação de financiador de última instância do capital dos bancos, tendo, no entanto, abdicado dos seus direitos de gestão e propriedade. Estas opções desastrosas resultaram também, em larga medida, de pressões europeias, como foi visível na decisão de venda do Novo Banco ao fundo norte-americano Lone Star: o Estado ficou com 25% do capital e 75% da responsabilidade sobre as perdas futuras, tendo ainda abdicado de participar na administração.
O erro da privatização do Novo Banco
Em 2017, o governo do PS vendeu 75% do Novo Banco ao fundo Lone Star, abdicando de ter uma posição na gestão do banco. No âmbito desse contrato de venda foi criada uma garantia de 3900 milhões de euros, que seria acionada pela combinação de dois mecanismos: as perdas associadas a uma carteira de ativos “tóxicos” e as necessidades de capital do banco. Nos seus atos de gestão corrente, a administração do Novo Banco (ao serviço da Lone Star) interferiu em ambas as dimensões, pelo que a venda criou um conflito de interesses. Ainda que existam alguns mecanismos de verificação, no caso da gestão da carteira de ativos diretamente coberta pela garantia, o mesmo não se verifica para os restantes atos de gestão do banco. O potencial de abuso criado por este contrato resultou em litígios entre o Fundo de Resolução e o Novo Banco relativamente a verbas indevidamente imputadas à garantia pública. Aos escândalos da alienação de carteiras de imóveis por valores simbólicos ou da incapacidade de cobrança a grandes devedores, soma-se agora a certeza de que o Estado não garantiu a defesa dos seus interesses no caso do Novo Banco. Depois de esgotada a garantia pública, o banco volta agora aos lucros.
A privatização do Novo Banco foi um erro que o Bloco de Esquerda procurou evitar desde o primeiro momento, ao defender que a utilização de recursos públicos deveria ser acompanhada da propriedade do banco. Essa posição permanece válida e justifica a intervenção para recuperar o controle público do banco.
Não foi apenas no Novo Banco. Os casos do Banif e mesmo da Caixa Geral de Depósitos deixam claro que as instituições europeias têm promovido ativamente um quadro legal que retira soberania aos Estados nacionais com o objetivo de promover a privatização e concentração das instituições bancárias a nível internacional.
As regras europeias de resolução bancária, conjugadas com o regime das ajudas de Estado, transferiram para o BCE e para a Direção de Concorrência da Comissão Europeia as decisões estratégicas sobre a banca nacional: o momento da intervenção, a sua forma (liquidação ou resolução) e o destino privado do banco de transição. Além disso, em Portugal, da aplicação destas regras resultou, não apenas a entrega do sistema bancário aos interesses de curto prazo dos seus acionistas, mas também o controlo de 61% da banca nacional por acionistas estrangeiros, em particular fundos de investimento, cuja submissão à lei nacional é mais difícil. No caso do setor segurador, depois da venda da Fidelidade e da Tranquilidade, 86% do capital é estrangeiro.
Esta opção é errada. Por um lado, a banca é um bem público e um setor demasiado estratégico para ser gerido de acordo com os interesses financeiros dos acionistas privados. Uma política industrial orientada para o emprego e para a transição energética precisa de instrumentos financeiros democraticamente controlados e geridos. Esta conclusão é ainda mais grave se a banca for dominada por fundos de investimento estrangeiros sem ligação ao tecido empresarial português, nem vocação para uma gestão de longo-prazo e muito expostos aos riscos dos mercados internacionais.
A propriedade pública é, assim, uma condição essencial para a transformação do sistema bancário num fator de desenvolvimento da economia. É por esta razão que o Bloco de Esquerda defende a recuperação do sistema bancário como serviço público. Para prevenir formas de instrumentalização da banca pública por interesses particulares, é necessário garantir objetivos estratégicos claros e democraticamente discutidos, padrões de excelência a nível comportamental e prudencial e regras firmes de fiscalização e transparência.
Entre 2007 e 2018 foram disponibilizados aos bancos portugueses 23.800 milhões de euros em fundos públicos. Esta soma contabiliza valores entretanto devolvidos, bem como uma parte das dívidas dos bancos ao Estado através do Fundo de Resolução, tem hoje um valor de 6383 milhões de euros, mas exclui outras formas de apoio. Entre elas estão garantias públicas e, em particular, os ativos por impostos diferidos, criados ao abrigo do regime especial de 2014, que constituem verdadeiras ajudas de Estado à banca.
A imaginação criativa para cobrar aos contribuintes a conta dos bancos
Aos gastos associados ao Fundo de Resolução acresce a dimensão dos Ativos por Impostos Diferidos (AID). Os AID surgem pelo facto de existirem regras diferentes para a admissão de perdas por imparidade na contabilidade e na fiscalidade, sendo mais estritas nesta última. Em teoria, a diferença entre estes dois registos leva ao pagamento de um IRC superior no ano em que a perda se verifica, constituindo-se um AID que posteriormente poderá ser deduzido no ano da aceitação fiscal do registo da imparidade (ou nos 5 anos seguintes, em caso de prejuízo fiscal). Com a crise financeira, o registo de imparidades (perdas) disparou levando a um crescimento explosivo do stock de AID, que se tornou uma parte substancial dos ativos e que foi registado como capital dos bancos em Portugal.
Em 2014, a regulação bancária constatou que, dado o enorme valor de AID existente nalguns bancos e a perspetiva negativa de lucros no médio prazo, não seria viável “escoar” o stock de AID e, por conseguinte, aqueles valores poderiam não ser recuperados pelos bancos. Assim, os AID deixariam de contar para os rácios de capital dos bancos, colocando vários deles em situação de insuficiência de capital.
Para resolver o problema, o governo PSD/CDS conferiu a estes AID direitos especiais que os aproximam, de facto, de capital garantido pelo Estado. Daí o nome de AID elegíveis.
Os AID elegíveis podem: a) ser descontados perpetuamente: só deduzem ao apuramento do lucro fiscal se este for positivo, de outra forma transitam para o ano seguinte, por oposição à obrigatoriedade dos AID anteriores de entrar para o apuramento do lucro (ou prejuízo) fiscal no ano em que são reconhecidos fiscalmente; b) ser “reclamados” ao Estado: em caso de prejuízo, a instituição pode pedir ao Estado a devolução de AID, num montante equivalente à relação entre o resultado desse ano e os capitais próprios; c) ser “reclamados” ao Estado num processo de liquidação do banco.
Em 2016 este regime foi revogado mas até então os bancos já tinham registado milhares de milhões de imparidades. Não pagaram IRC porque apresentaram prejuízo, mas mesmo assim guardaram o direito de deduzir essas perdas, de montante superior a 3000 milhões de euros, nos seus impostos futuros – para sempre.
Os bancos que mantiveram prejuízos ao longo destes anos puderam pedir esse dinheiro ao Estado, ficando este com direitos de conversão no seu capital, que pode exercer ou vender depois ao próprio banco. Até 30 de junho de 2022, a data do último relatório publicado pela Autoridade Tributária sobre a matéria, os bancos apresentaram pedidos de conversão de impostos diferidos em injeções de capital pelo Estado (sob a forma de créditos tributários) no valor de 1.131 milhões de euros, sendo que, desse total, 956 milhões foram aceites pelo fisco. Os responsáveis por esses pedidos foram a Caixa Geral de Depósitos, o Banco Montepio, o Novo Banco, o Haitong Bank, o Banco Efisa, o Banif – banco de investimentos, e o Bison Bank.
As propostas do Bloco:
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Criação de instrumentos de reforço da propriedade e intervenção públicas no sistema bancário, através de:
- Conversão dos AID elegíveis em capital e conversão das dívidas ao Fundo de Resolução em instrumentos convertíveis em capital, de forma a dotar o Estado de direitos de propriedade e gestão executiva na proporção dos montantes e riscos assumidos com o financiamento do sistema bancário;
- Revisão das leis de resolução bancária, retomando o Estado poderes soberanos sobre decisões relativas à intervenção de bancos em situação financeira insustentável. Para além das hipóteses de liquidação e resolução, deve ser previsto o controlo público correspondente ao capital financiado pelo Estado, direta ou indiretamen- te (através do Fundo de Resolução);
- Elaboração de um programa estratégico, a debater no Parlamento, com as principais linhas orientadoras da atuação da banca pública. Este programa deve ter em conta a prioridade do país, que é a sua reconversão produtiva, de um modelo financeirizado e dependente para o investimento em mobilidade, eficiência energética, e indústria ambientalmente sustentável;
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Reforço e alargamento da base da contribuição das instituições financeiras.
Proteger os clientes da banca
As sucessivas alterações de taxas, de regras de acesso e de padrões contratuais têm vindo a prejudicar os depositantes e clientes dos bancos. Para o Bloco, é essencial preservar as regras dos serviços mínimos universais, do direito a usar uma conta bancária, a receber informação fidedigna e compreensível, e a poder usufruir de serviços bancários a preços acessíveis, o que implica a redução das atuais comissões bancárias.